O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu na noite desta quinta-feira (07/11) o julgamento que é considerado o mais importante do ano na Corte: o da prisão após condenação em segunda instância.
A Corte decidiu, por 6 votos a 5, que um réu só poderá cumprir pena se esgotados todos os recursos, mudando entendimento anterior, de 2016, que previa a pena após condenação em segunda instância.
O resultado pode mudar os casos de 4.895 presos do país, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Um deles é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Tendo prevalecido a tese pelo esgotamento dos recursos, ele deverá ser solto — o caso mais avançado contra o ex-presidente, o do tríplex do Guarujá, ainda tem recursos pendentes. Isto é, ainda não transitou em julgado.
Foram derrotados os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia.
Já o entendimento vencedor, em defesa do trânsito em julgado, foi defendido por Marco Aurélio Mello (relator do caso), Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, que deu o voto final e de minerva.
O julgamento começou no dia 17 de outubro, e se baseia em três Ações Declaratórias de Constitucionalidades (ADCs), apresentadas pelo antigo Partido Ecológico Nacional (PEN, atual Patriota); pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); e pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
As ações pedem que o Supremo declare constitucional (isto é, de acordo com a Constituição) o Artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP).
O Artigo 283 diz que "ninguém poderá ser preso senão (...) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado". Para PCdoB, a OAB e o antigo PEN, o artigo está de acordo com o que diz a Constituição.
A argumentação se baseia no inciso 57 (LVII) do Artigo 5º da Constituição, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado".
A BBC News Brasil resume abaixo, do mais recente para os mais antigos, os votos dos ministros sobre o assunto.
Dias Toffoli — contra
Dias Toffoli, presidente da Corte e voto final, afirmou que o debate no STF dizia respeito à validade de trecho do artigo 283 do Código de Processo Penal, que prevê que a prisão só pode ocorrer após trânsito em julgado do processo, quando não couber mais recursos. Em seu voto, ele considerou o trecho válido.
Toffoli afirmou que a legislação penal dizendo que ninguém será preso antes do trânsito em julgado evidenciou a "vontade expressa do Parlamento brasileiro", mas, em ressalva, opinou que casos do tribunal do júri (que julgam crimes de sangue, contra a vida) não devem ser tratados da mesma forma.
Em coletiva após o voto, ele afirmou defender a prisão imediata de condenados em tribunais de júri, sem esperar o trânsito em julgado, e opinou que presos considerados violentos não poderão se beneficiar da decisão desta quinta.
Celso de Mello — contra
No começo de seu voto, Mello destacou que a mudança no entendimento do STF não significava o fim completo da prisão antes do trânsito em julgado. Pessoas que cometerem crimes violentos, por exemplo, continuariam sendo presas preventivamente, antes mesmo de condenadas.
"Portanto, não é correto afirmar que apenas depois do esgotamento de todas as vias recursais se admitirá o encarceramento", argumentou.
O ministro ressaltou ainda que o julgamento tratava de uma "cláusula fundamental" da Constituição, "cujo texto exige e impõe o requisito adicional do trânsito em julgado (para o início da pena)".
Celso de Mello fez ainda uma longa fala sobre a importância do processo penal para a proteção dos indivíduos "contra o abuso de poder eventualmente perpetrado por agentes estatais". "Esta Corte Suprema não julga em função da qualidade das pessoas ou de sua condição econômica, social, política, estamental (grupo social) ou funcional", disse.
Gilmar Mendes — contra
Em seu voto, Gilmar Mendes disse que o "fator fundamental" para a sua mudança de orientação foi a forma como os tribunais de instâncias inferiores passaram a entender a decisão do STF de 2016.
O que o STF disse à época era que a prisão após 2ª instância era uma "possibilidade", e não algo obrigatório, disse Gilmar.
"Decidiu-se que a execução da pena era possível, mas não imperativa. De fato, na própria ementa (do julgamento de 2016), estabeleceu-se que a execução era uma possibilidade, e não uma obrigatoriedade", disse Gilmar.
"Todavia, a realidade é que, após o julgamento de 2016, os tribunais passaram a entender como algo imperativo", "sem nenhuma análise", disse o ministro.
No voto, Gilmar Mendes contestou a fala da ministra Cármen Lúcia de que a proibição da prisão antes do fim do processo favorece os mais ricos. Ele diz que defensores públicos "desmistificaram esse discurso" mostrando que pessoas pobres também conseguem reverter condenações de segunda instância.
Cármen Lúcia — a favor
Cármen Lúcia iniciou seu voto nesta quinta-feira deixando claro que mantém seu posicionamento histórico no tema: a favor da prisão já depois da segunda instância. A ministra mantém a mesma posição desde que o STF tratou do assunto pela primeira vez, em 2009.
Segundo o voto dela, advogados de ambos os lados apresentaram bons argumentos na tribuna do Supremo, mas não chegaram a alterar o seu entendimento sobre a questão.
Para a ministra, a impossibilidade da chamada execução antecipada da pena gera "crença da impunidade", principalmente para os réus com mais recursos para explorar o "intrincado sistema de recursos" da Justiça brasileira. "Punição incerta", disse Cármen, "alimenta mais crimes, enfraquece o sistema de direito".
Ricardo Lewandowski — contra
Ricardo Lewandowski deu um voto incomumente rápido no dia 24 de outubro — com pouco mais de 15 minutos. Sua fala foi similar à de Marco Aurélio: a Constituição e o CPP são claros, e o STF não pode transigir ao interpretá-los.
"A Constituição não é mera folha de papel, que possa ser rasgada quando contraria forças políticas do momento. Ao contrário, possui força normativa para fazer com que seus preceitos sejam cabalmente observados. Ainda que (contra) anseios momentâneos, mesmo tidos como prioritários, a exemplo do combate à corrupção, o qual o setor mais politicamente mobilizado da população hoje reclama com estridência", disse.
Luiz Fux — a favor
O ministro Luiz Fux começou seu voto na tarde de 24 de outubro apontando casos onde os réus, segundo ele, ainda estariam soltos se não fosse a prisão após a segunda instância. Mencionou tanto homicídios (como os casos Nardoni, Roberto Aparecido "Champinha" e o assassinato de Eliza Samudio) quanto casos de corrupção ("Anões do Orçamento", Banestado e juiz Nicolau dos Santos Neto).
Fux argumentou de forma parecida com o voto de Luís Roberto Barroso: o direito, disse Fux, não pode existir descolado da realidade, e os juízes precisam considerar os efeitos práticos de suas decisões. Citando um antigo ministro do STF, Fux disse que o país tem uma "espantosa e extravagante prodigalidade (excesso) de recursos".
"Nós não fazemos leis para ficar aqui aplicando sem verificar quais serão as suas externalidades. O direito, na verdade, conforma o comportamento humano. A pessoa tem que saber o que pode, e o que não pode", disse.
Rosa Weber — contra
Rosa Weber foi a primeira a votar na tarde de 24 de outubro. A ministra começou falando sobre a aprovação do trecho sobre presunção de inocência na atual Constituição brasileira. A Assembleia Constituinte, frisou ela, optou por deixar expresso que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado.
Weber também ressaltou que manteve-se fiel à orientação do tribunal a partir de 2016, quando o STF passou a permitir a prisão após segunda instância — deu, por exemplo, 66 decisões individuais seguindo a mesma orientação, antes de julgar o caso do ex-presidente Lula em 2018. "A imprevisibilidade é, por si só, capaz de degenerar o direito em arbítrio", disse.
A direção do voto de Rosa Weber ficou clara quando ela falou sobre as possibilidades de interpretação da Constituição. "A vontade (do intérprete) não é absoluta, mas deve render reverência ao texto (da lei) como realidade absoluta", disse. "Não há como o leitor ignorar o valor dos símbolos marcados com tinta sobre o papel."
Luís Roberto Barroso — a favor
Barroso votou ainda no dia 23 de outubro.
De acordo com o ministro, as três ADCs em julgamento se baseiam em três argumentos: o de que a Constituição é taxativa e deve ser interpretada de forma literal; a de que a execução provisória da pena aumenta o encarceramento; e a de que os mais pobres são prejudicados pela regra atual.
Para o ministro, as três ideias não se sustentam. "São ideias que não correspondem aos fatos, como diria Cazuza", argumentou.
O ministro ainda citou dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) que mostrariam, segundo ele, que a mudança do STF em 2009 (quando a prisão após segunda instância passou a ser permitida) não aumentou o número de presos — ao contrário, o encarceramento diminuiu.
Reportagem da BBC News Brasil publicada esta semana trouxe dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre as chamadas audiências de custódia. A partir de 2015, as audiências evitaram a ida para a prisão de cerca de 250 mil pessoas. O número pode ser responsável pela redução no ritmo do encarceramento.
Edson Fachin — a favor
Edson Fachin, relator dos casos da Lava Jato no Supremo, foi o terceiro a votar. Ele acompanhou a divergência aberta antes por Alexandre de Moraes (a favor da prisão após segunda instância).
Num voto bastante longo, Fachin argumentou que, na maioria dos casos, os recursos ao STF e ao STJ não têm o efeito de suspender a prisão e, por isso, não há prejuízo para o réu quando se admite a prisão após segunda instância.
A posição a favor da execução provisória da pena não é "punitivista", diz ele. Trata-se apenas de garantir que todos tenham o mesmo tratamento da Justiça.
Alexandre de Moraes — a favor
Alexandre de Moraes foi o segundo a votar e abriu a divergência em relação ao Marco Aurélio Mello — foi o primeiro a defender a regra atual.
Para o ministro, uma mudança nas regras transformaria os tribunais de 1ª e 2ª instância em locais de "passagem" para os processos. "Não se pode afastar a efetividade da tutela judicial dadas pelos juízos de 1ª e 2ª instância, que são os juízes naturais da causa. Não se pode transformar esses tribunais em tribunais de mera passagem", disse.
Antes de discutir o assunto, porém, Moraes fez um longo parêntese sobre acusações e ataques que o Supremo estaria sofrendo, segundo ele, por causa deste e de outros julgamentos.
"Ao Supremo, não se deu o direito de ter vaidade, de fazer populismo judicial. Se deu o dever de se perguntar: 'isto é certo?'", questionou Moraes.
Marco Aurélio — contra
Relator do caso, o ministro Marco Aurélio foi o primeiro a votar, ainda na manhã do dia 23 de outubro.
Ele argumentou que o Artigo 283 do Código Penal está de acordo com a Constituição, como defendem os autores das ações em julgamento. Em casos como este, onde a norma é clara, disse Marco Aurélio, o Poder Judiciário deve exercer "o princípio da auto-contenção", e evitar interferências indevidas.
Para ele, a mudança de entendimento que hoje permite a prisão após segunda instância representa um "retrocesso constitucional".
Além disso, disse o ministro, é impossível devolver a liberdade a alguém que seja preso após a segunda instância e depois solto por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo.
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